Vestígios - contos, quase contos e personagens

Vestígios Logo


O avesso das coisas

Dizem que uma das coisas mais apavorantes do lobisomem é que ele tem a pele ao contrário, com o pelo voltado para dentro e o dentro da pele para fora, o avesso das coisas, o nada, é o que mete medo.

O nada me apareceu no elevador de uma galeria quando, diante do painel de botões, não soube que andar procurava, e era o nada, era o avesso do painel, o elevador subia perigosamente, passaram-me pela cabeça o 2 da minha casa e o 4 da minha mãe morta há dez anos e não era aquilo, numa fração de segundo voltou-me o 8, apertei e me precipitei para fora no sexto. Só quando vi as setas, 602, 604, é que percebi que o andar não era aquele, tudo girou e se recolocou à minha volta, reconheci o prédio, o consultório para onde eu ia, o chão firme voltou, a fresta se fechou, esqueci-me desse acontecido.

Num outro dia, saindo de um restaurante, pensei-me do lado oposto da rua, virei ao contrário e no lapso de alguns segundos não reconheci as casas, a loja da esquina, nem qual o lado da praia e o da lagoa, vi-me outra vez num vazio, um branco de sensações que era também o avesso da rua, o lobisomem me espreitando com a pele ao contrário, o nada aflorando como se uma gosma branca se espalhasse sobre a cidade. Vi o avesso do bairro, o avesso das ruas até que avistei a lagoa por trás de uns carros e as calçadas foram girando, teia de aranha, linhas de mapa que se encaixam e cobrem o nada à minha volta. E vi de novo o chão firme da cidade pelo lado direito, à superfície da pele, lembrei-me de antes e percebi uma fenda agora persistente.

O pior aconteceu só depois e agora sei de fato o que é o avesso das coisas e de mim. É que um dia chamei o elevador e puxei a porta antes da hora, antes de chegar a cabine ao meu andar. A porta cedeu no escuro e se entreabriu numa fenda que eu fechei depressa, era a história que sempre contavam na infância: os meninos brincando de pegar e a porta que se abriu, o garoto que caiu no poço e morreu aos quatorze anos.

Depois quiseram repetir, chamaram o elevador para o quarto andar e tentaram abrir a porta, mas ela não cedeu, foi só naquele exato instante que a fenda para o nada engoliu o menino, aquele túnel para o vazio, para o avesso de tudo o que é, eu ainda tive tempo de fechar a porta depressa, mas pude ver a tentação do nada, aquele tecido entre a pele e o de dentro, a gosma branca, a brecha para o avesso das coisas que nunca mais se fechou.

POSTADO EM 19 DE JULHO
comente

Nome

E-mail

Mensagem