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Infância

Para o Narciso, nos seus noventa anos

 

Pois é, doutor, como é que pode, a gente se lembrar de uma coisa que aconteceu há tanto tempo?

Quando meu pai e minha mãe foram morar pros lados da Serra do Capim, eu tinha uns três anos. Já vou fazer sessenta e ainda me lembro direitinho...

Eu fui num cesto, que chamam de piruá, que meu pai botou no lombo do burro, do outro lado, no outro cesto, ia a mana Conceição, com uns travesseiros e mais uns bagulhos para servir de contrapeso. E eu me lembro até hoje quando paramos na beira de um córgo, um riozinho de nada, e o burro desceu um barranquinho, mergulhou as patas dentro d’água para beber. E eu sacolejando lá dentro, espiava para a água espumando nas pedras e eu tive um medão...

Depois a gente ia com papai e mamãe pra roça pra ajudar a capinar. Foi nesse tempo que mamãe costurou pra mim um bornal e eu gostei tanto que botava ele no ombro, atravessado aqui assim, e não queria mais nada! E ia catando lata velha, caco de vidro, pedaço de ferro, parafuso, e botava aquela traquitana toda no bornal e não havia quem tirasse ele de mim. Ah, eu ficava bravo mesmo. Como é que pode, adorar tanto uma coisa dessas, assim? Criança tem cada uma... 

Até que um dia, teve um incêndio pelos matos, não sei se foi alguém que tocou fogo de maldade, ou fez queimada pra fazer lavoura, mas alastrou pelos matos e estava ameaçando a nossa lavoura.

E vai um dia, depois que o fogaréu passou, a gente foi dar um passeio lá perto e papai descobriu um toco grande e debaixo dele ainda tinha uma porção de brasas prontinhas pra pegar fogo de novo, era só dar um vento. O rio era um pouco longe, não tinha uma lata perto e aí papai disse:

– Me dá teu bornal pra eu enrolar ele no pau, molhar e apagar essas brasas.

Eu esperneei.

– No meu bornal, não.

Mas minha mãe me disse

– Dá, meu filho, eu te faço outro, depois.

E vai daí, eu dei. E papai jogou pra fora aquela muamba toda, foi até o rio e molhou ele, fez um amarrado bem bom, e passou pelas brasas, uma vez, duas vez, até apagar tudinho.

Passaram dias e o fogo não voltou. E o senhor me deu outro bornal? Pois é, nem eles.

Depois foi uma lata vermelha, uma lata de biscoito bonita, vermelhinha. Eu pegava um pedaço de pau e vivia batendo nela que nem tambor. E não havia quem me separasse da minha lata. Mas era bonita mesmo.

Até que uma vizinha botou olho grande nela, e apareceu lá em casa com uma franga, pra trocar pela lata. Dessa vez eu fiz uma gritaria danada, me agarrei com ela. Mas minha mãe tinha muita paciência, só falava baixo e foi me acalmando. Disse que uma franga ia ter muito mais serventia, ia botar ovo pra gente comer. Eu sempre fui obediente, o pior é que dali a uns dias a franga fugiu. Não sei se bicho comeu... e, nem lata, nem franga.

Mas dali pra diante eu já ia trabalhar com meu pai, devia ter uns seis anos, e nunca mais tive essas bobagens de criança.

Como é que pode, doutor, eu lembrar uma coisa dessas até hoje?

POSTADO EM 19 DE JULHO
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