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Desejo

A mulher parou diante da vitrine, atenta. O sol espelhava o lado esquerdo do vidro, ocultando os objetos e devolvendo-lhe o rosto dividido. Enquanto do outro lado, na sombra, divisavam-se, alinhados, o aparelho de som, o dvd player, um notebook, um celular. Já a porta aberta conduzia ao interior da loja, à intimidade cobiçada das máquinas de lavar e secar roupa e das geladeiras de porta dupla, dos freezers e das enormes TVs de tela plana.

No limiar, a mulher, os lábios entreabertos, o olhar passeando mecânico pelos desejos dispersos. Menos que um pensamento agitou-lhe os cabelos e ela ainda tentou, num esforço de concentração, prestar atenção à vitrine. Mas logo a brisa agitou-lhe de novo a auréola que escapava do penteado. E no momento seguinte viu apenas Daniel. Os braços descaíram um pouco, a tensão do rosto se desfez numa quase entrega. Na véspera tinham saído E ele voltara a lhe falar: “Mas não pode resolver porquê? Será que não me ama de verdade?” O sol, descendo, arrancou faíscas vermelhas da cantoneira cromada da vitrine, ofuscando-lhe por um instante o olhar.

Ângela procurou enxergar melhor o celular, mas seus olhos resvalaram do objeto como os dedos de um náufrago mal tocando uma tábua. Será que nunca vou me decidir? Será que gosto mesmo é do André? Ou será uma questão de hábito, segurança? E agora enxergava melhor o celular, era pequeno, bom de levar na bolsa. Esse modelo é que eu queria, este mês, não, estou com muitas despesas, mas no mês que vem, ou quem sabe no Natal...

Umedeceu os lábios com a ponta aguda da língua e semicerrou os olhos de pestanas finas e compridas. Os que Daniel elogiava, os olhos de esmalte, prontos a receber e refletir, pura matéria exposta, os lábios e olhos como nunca antes, e jamais pensou que alguma coisa pudesse ser tão intensa, tão intensa e ávida a espera de um prazer, por que parecia impossível se ele oferecia? Por que recusar o que era bom e podia ser seu? Poderia? Por que ficar assim imóvel na entrada, no limiar dessa vertigem de perfeição? Ah, queria os dois, com sofrimento se espantou, queria tudo.

Abriu novamente os olhos, engoliu a saliva com esforço e olhou firme para dentro da loja. O vendedor cumprimentou-a e sorriu, e ela também, desconcertada, ela que vinha todo fim de mês contemplar os aparelhos e perguntar os preços, agora estava com vergonha do vendedor, vai pensar que sou louca, quero tudo e não consigo nunca resolver. Mas, entre o freezer e uma geladeira maior, tenho que pensar bem, é uma decisão séria, disse ainda sofrendo um pouco. Quem sabe abria um crediário e ficava logo com os dois? Mas eu não posso resolver isso agora. Se eu me separar do André, não posso assumir a prestação. E se for para um apartamento menor... Mas antes de pensar o que pensara, já os olhos voltados para fora esqueciam Daniel e se cravavam na máquina de lavar e secar roupas. Esta, eu ainda vou ter um dia, pensou, selvagem, querendo com força de predador. Juro que vou, quis já sem nenhuma dúvida ou pudor. No dia em que o Guilherme se formar e for para fora – só falta um ano – e a Cláudia casar, talvez eu possa dispensar a empregada. Com uma faxineira uma vez na semana e comidas congeladas – até lá já comprei o freezer e um microondas novo – com os dois e mais essa máquina, eu resolvo a minha vida. Daniel era agora uma estrela distante, recuara, concentrado num ponto mínimo, cravado no céu remoto do um-dia-nunca. De onde lançou um raio azulíssimo que lhe arranhava o coração.

No começo fraco, música de fundo a que já se habituara. Logo mais forte, obrigando-a a de novo pensar nele, nos olhos, na boca, nas mãos, no jeito voraz com que a espreitava como se estivesse sempre a despi-la. Ali, a seu lado, os olhos de ternura e rapto, musgo e rapina. E a intensidade deste desejo a pique de arrastá-la. E de novo ela se proibia. Tanto desejo e tanto prazer. Querer tanto uma coisa assim, esperar tanto uma coisa assim, alguma lei secreta o interditava. Uma mulher casada! Um anjo, com uma espada de fogo, fechava as portas do Paraíso. Paraíso ou Inferno? Sentiu um aperto na boca do estômago. Não podia entrar na loja. Não agora, depois dos olhos de Daniel. Depois, já iam mesmo fechar. A paz doméstica se rompera. As promessas de felicidade ao lado do marido “que maridão você tem”, lembrava o riso da amiga, “você é uma boba de não aproveitar...”, freezer, a geladeira, a máquina, Jesus, o celular! O desejo móvel e voraz ainda procurava em desespero fixar-se. Nenhum para ela. O vendedor cumprimentou-a de novo e enfiou o gancho de ferro no trinco da porta, baixando a guilhotina até o meio.

– Já estou fechando, mas se a senhora ainda quiser entrar... Antes que seja tarde, antes que seja tarde, pensou, já se esquivando um passo.

– Não, não, hoje estou só olhando, – respondeu quase em pânico e agradecida ao inevitável (não mereço nada disso, não mereço nada.). Era melhor tomar juízo, continuar com André, mas, como faço para esquecer Daniel? Talvez seja a última oportunidade de me apaixonar...

O céu estava todo vermelho sobre sua cabeça. Uma espada de fogo. Um anjo... Voltou-se para atravessar. Por um momento desconheceu a rua, vacilou em silêncio entre as buzinas, a fumaça enxofrada, as nuvens incandescendo no alto, brasa viva e sangue. Puxou do fundo do peito o ar que custava a encontrar, a respiração um pouco ofegante debaixo do céu. Lançou um último olhar para a vitrine meio escondida pela guilhotina e cruzou o asfalto na direção oposta, quase fugindo.

Quando alcançou o meio fio, respirou aliviada. E então fechou o coração a chave, selou com força o compromisso das conveniências miúdas, equilibrou com mão certeira a balança das dúvidas cotidianas e retornou, pesada, pela rua conhecida, lastreada de hábitos como barca em sua rota, buscando a estação do metrô que a levaria através de seu pequeno purgatório em direção à casa.

Daniel impossível, o de antemão perdido, promessa cravada num amanhã remoto. E a dúvida conhecida e circular, a paixão fixa da decisão sempre adiada.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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