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Presente

– Moça, podia me auxiliar, por favor? – perguntou, do fundo da sua vergonha.

– Eu não sou da loja – procurei responder, polida, talvez não sem o travo de orgulho que preciso pôr na voz quando me confundem com as vendedoras. O que acontece quase sempre.

– Eu sei que não. Mas é que gosto de consultar gente moça, que sabe melhor o que se usa – respondeu a senhora com a travessa na mão, encarando-me do fundo da sua ansiedade. – Eu sou mais velha, já sou de outra época, não entendo dessas coisas, – completou ainda, destacando sua inadequação. – Você acha que essa travessa é melhor que a bandeja? Pediram-me para comprar um presente... isso de escolher para outra pessoa... – e explicava, justificava-se, pedindo desculpas por pedir opinião, por explicar, por pedir desculpas. Por existir.

– É difícil mesmo comprar para os outros – procurei ajudá-la. Enquanto a vendedora, um pouco impaciente:

– Mando suspender a bandeja?

– É, suspende – sorriu ela, conciliadora – eu estou aqui consultando a moça...

– Suspende a bandeja 031! – a mocinha gritou nos fundos da loja, para o andar de cima. E veio postar-se junto a nós, testemunha muda de todo aquele desconforto de existir.

(Logo a quem ela veio consultar! pensei. Tinha acabado de atravessar desertos de dúvida por causa de umas tigelinhas para sorvete. Também explicando demais, pedindo desculpas por demorar a escolher e por explicar...)

– É, a travessa é muito bonita. É um ótimo presente – tentei ser natural e desenvolta.

– Melhor que a bandeja? – suplicou, intensa.

– É mais original – acrescentei sem ter visto a bandeja.

– Se fosse para mim eu saberia escolher – mentiu ainda a mulher, em sua vergonha de ser indecisa.

– É claro. Mas a senhora pode levar a travessa sossegada – respondi para finalizar, do alto da minha autoridade inventada e quase convincente. E aproveitei a pausa para pedir licença e me voltar para a menina que trazia a nota.

Fingi ocupar-me com o preenchimento do cheque, enquanto continuava a observá-la, um pouco aflita. Ela se absorveu, por sua vez, no exame sofrido da travessa. Perguntava coisas à vendedora, toda concentrada, como se quisesse arrancar do objeto o mistério absoluto do existir e do querer. Terminou com um suspiro conformado:

– É, acho que a travessa é melhor; a moça gostou.

– Uma travessa 574, para presente! – a vendedora gritou, enquanto eu pagava.

Era sábado e havia muito movimento. Os embrulhos iam demorar. Sentei-me numa cadeira, distraí-me olhando as vitrines.

Quando a vi de novo, ela andava de um lado para outro, desamparada e aflita. Parecia à beira do inevitável. E foi o inevitável que a fez chegar ainda uma vez perto da vendedora e dizer com uma casualidade afetada:

– Sabe?, eu resolvi mesmo pela bandeja. Acho que é mais fino. – Já não podia desculpar-se sem se humilhar além do suportável. E fingia agora um ar leve e casual, como se fosse muito natural mudar de opinião outra vez. Mas cada músculo do seu rosto transmitia a tortura calada da dúvida, a angústia da criatura deslocada no Universo, jogada no planeta errado, sem poder de decisão. E a iniquidade de ser diferente de seus semelhantes.

A moça, implacável, não sorriu. Por um instante, o espanto aflorou suas pupilas, submergindo em seguida sob um desdém polido e impessoal. Como um autômato, girou nos calcanhares e gritou para os fundos:

– Olga, desembrulha a travessa 574 e embrulha de novo a bandeja 031! – Gritaram qualquer coisa de volta e ouvi o ruído inconfundível de gargalhadas.

Olhei em pânico para a senhora, mas ela não parecia ouvir. Estava sentada numa cadeira próxima, toda voltada para dentro, o olhar pendente de algum objeto da vitrine, na tarefa de descobrir-lhe o secreto sentido. Talvez se alheasse de propósito para não escutar. Também não me via mais. Convidara-me a seu inferno particular, introduzira-me a paragens remotas e proibidas, um segredo constrangedor nos unia. Era melhor esquecer-me.

Quando passei por ela, embrulho na mão, respondeu ao meu cumprimento com um sorriso pálido. Deixei-a ainda sentada, as mãos imóveis, decifrando o enigma dos copos e das tigelas. Um pouco mais aliviada da decisão aflita. Mas já consumida no ardor das escolhas futuras. Opressa ao peso da meia idade, das humilhações miúdas, da inadequação cotidiana e fundamental. 

Quando pisei a calçada, olhei para cima e respirei fundo. Acabava de emergir do purgatório. Precisava de azul.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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