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Bolo de banana

Bolo de banana como aquele, e com aquele cheiro, nunca houve outro, só mamãe fazia. Às vezes eu e meu irmão voltávamos da escola, as merendeiras dependuradas de lado, a alça cruzando o peito e, mal virávamos a esquina, já sentíamos sua aura, misto solar da massa dourada no forno com uns laivos de banana, cravo e canela, todos separados e tudo uma coisa só, unidos como estrias de cor dentro do vidro sólido, três em um, tal como os Reis Magos, ouro, incenso e mirra e, Deus que me perdoe, a Santíssima Trindade. Então galopávamos para casa, tanto aquele perfume exercia sobre nós o seu comando. 

Depois que mamãe se foi, nunca mais senti o cheiro fantástico dos seus bolos. A receita ficou no caderno, mas não me atrevi a executá-la, e os aromas vindos de outras cozinhas não tinham aquele apuro, aquele redondo de mata aberta, aquela gentileza sutil ao mesmo tempo simples e sofisticada, porque feita com os bons produtos da terra, tal como um linho que cai bem.

Meu irmão morreu pouco depois e o segredo de três se tornou, como tantos outros, parte de um legado que não posso mais partilhar, a não ser, de segunda mão, com os filhos, que sempre preferiram, da avó, a broa de fubá e as longas histórias de família.

Ficou o bolo de banana, seu sabor único, seu odor inigualável, em camadas profundas e aparentemente esquecidas, ficou só meu.

Estou contando isso porque, de uma semana para cá, aquela aura me invade e me persegue. Nos sonhos, onde viro a esquina com meu irmão, sentimos o chamado sedutor, mas logo perdemos o rastro e nos quedamos na tarde grande e vazia, tão vazia que termina por me acordar, nas brancuras do percal. Nas tardes de tricô, quando da cozinha me vem o perfume encantado e enganador, que me faz correr e abrir, de repente, um forno também vazio.

Meus filhos e minhas noras dizem que não é nada, que estou só lembrando, mas eu digo que é algo mais que lembrar, é antes ser lembrada por esse perfume e embarcar em seu navio de vento... Os netos ficam quietinhos e sonsos, como se não entendessem essa conversa, que, no entanto, entendem melhor que ninguém, com os olhos muito abertos e o coração aflito.

Depois que eles se vão, escovo os dentes, coloco uma camisola de opala e vou-me deitar com meu livro, até que o sono pese nas pestanas.

Então tiro os óculos, coloco-os na mesa ao lado e apago a luz. Ainda digo uma oração apressada e vou passear por aí, menina, conduzindo meu irmão na direção apontada pela brisa, a um tempo caçadora e presa.

Qualquer noite, sigo de vez o rastro, embarco na infância e acho a caça, o berço, a pátria, a verdadeira coisa, preparo-me para lutar e saber, e era só um bolo dourado, coberto de bananas morenas, ingênuo e profundo, ainda pressinto o sabor do cravo e o ar de maresia chegando, o bafo da chuva na terra quente, escuto uns pingos grossos caindo nas folhas, nas frutas e nas telhas, o barulho rascante do vento, respiro mais fundo... Qualquer noite dessas, não volto. 

POSTADO EM 19 DE JULHO
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