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Universidade

Caro Antônio,

Escrevo depressa, aproveitando a ida do Guilherme, que deve passar uma semana em Nova York. Queria encomendar-te duas enzimas de restrição. Ele leva a especificação e os dólares.

Como vai o trabalho no Hospital?

Aqui, as coisas estão difíceis. Ultimamente temos precisado comprar giz, material de escritório e até papel higiênico com nosso dinheiro. A Universidade não tem liberado um tostão e as verbas dos financiamentos acabaram. Nessas horas, penso no convite que tive para trabalhar aí e bate o maior arrependimento. Acho que você é que estava certo. Não sei se tive saudades de casa ou se queria construir alguma coisa por aqui – pura ilusão. Havia também a Sônia – você sabe que ela nunca aceitou a idéia de se mudar em definitivo. Mas, no fundo, acho que eu também não aceitava. Creio que poderia morar toda a vida no exterior, desde que fosse provisório. Provavelmente, foi uma soma de todos esses motivos.

Tem feito um friozinho gostoso. Pelo menos nosso inverno é agradável. Lembro, às vezes, o que a Sônia chamava de "sessão cebola" – tirar e vestir todas aquelas camadas de agasalhos. E, afinal, sempre existem a praia e o Flamengo.

Sônia manda lembranças para você e Carol, e um beijo especial para o Júnior.

Um grande abraço, antecipadamente obrigado,

Eduardo


Antônio,

Estou em falta contigo. Há tempos que queria ter escrito agradecendo a encomenda, mas não tenho tido tempo. As aulas recomeçaram e neste semestre tenho uma carga didática muito pesada.

Continuamos enfrentando problemas. Agora estamos com uma praga de camundongos no laboratório. Imagino que sejam camundongos, porque vi muitos buracos no rodapé. Mas são tantos que me assustei um pouco. Outro dia ouvi também um barulho de bichos arranhando a parede; era forte, receei que, em vez de camundongos, fossem ratos. Seu Alberto (lembra-se dele?) me pediu um remédio e, mais uma vez, precisei pagar do meu bolso. A verba da Universidade continua zerada. Estou com um financiamento recém-aprovado, mas, enquanto não sair a primeira liberação, continuarei na penúria, apelando para a "Fundação Eduardo Maia". Por essa altura da vida, é um tanto desanimador.

Mas estou te amolando com essa choradeira. Desculpe. Quando tiver um novo portador, vou abusar mais uma vez de você: desta vez será ATP.

Deixe de preguiça e escreva-me contando as novidades. Como foram as férias? Afinal, vocês foram mesmo ao Grand Canyon ou se decidiram por Yellowstone?

Lembranças a Carol. Diga a ela que estou com saudades dos nossos churrascos (ela ficou mestra). Escreva.

Um abração,

Eduardo

 

Antônio,

Se não fôssemos amigos há tantos anos, eu não escreveria. Você não sabe o que aconteceu, e não será culpa sua se não acreditar.

Outro dia, pouco depois de chegar ao laboratório – deviam ser nove e meia ou nove e 45 da manhã – estava conversando com Seu Alberto sobre os camundongos, quando de repente ele foi ficando pálido, pálido, cada vez mais pálido. 

– O senhor está passando mal? – ainda tive tempo de perguntar. Mas o homem continuou empalidecendo sem responder, foi ficando fino como um papel, perdendo o contorno e a profundidade dos traços que, borrados, escorreram rosto abaixo. Ele ficou transparente e sumiu diante dos meus olhos, deixando um montinho de roupa no chão. Ficou desaparecido uns bons trinta segundos e reapareceu depois, aos poucos, como fotografia que fosse surgindo sob o efeito dos reagentes. Ao todo, o fenômeno durou uns dois minutos, houve tempo de sobra para observá-lo. Sei que é muito estranho, mas juro que vi.

Dias depois, começaram os equipamentos. A centrífuga refrigerada, a ultracentrífuga, o contador de cintilações. Só que, com os aparelhos, a desmaterialização – ou seja lá o nome que se dê a este fenômeno – dura bem mais, será que é porque não são seres vivos?

Desta vez não vou te pedir nada. É só para pôr em dia as novidades. Dada a natureza dos acontecimentos, peço que esse assunto fique apenas entre nós.

Um abraço e até a próxima,

Eduardo

 

Caro Antônio,

Escrever-te tornou-se um hábito. Você é a única pessoa, além da Sônia, com quem posso me abrir. Mas não se esqueça:  este assunto é estritamente confidencial.

As desmaterializações de técnicos e equipamentos aumentaram. Outro dia, a ultracentrífuga ficou desaparecida por 48 horas. Dois dias! Você pode imaginar o que é isso? Fiquei em pânico. Pensei que tinha perdido o equipamento; que ela nunca mais se materializasse. No meio de tudo, você acredita que os pós-graduandos fizeram um "bolo" de apostas para ver quem adivinhava o dia e a hora do reaparecimento? Não há como a juventude! Que frescor, que alegria de viver! E parece que passa para a gente. Não sei o que seria de mim sem eles.

Acabo de ler a última frase e senti-me velho. Não estamos assim tão velhos, estamos? Parece que outro dia os pós-graduandos éramos nós, lembra? Mas você entende o que digo. Refiro-me justamente àquela primeira mocidade, cheia de sonhos, quando acabamos de entrar para a Universidade, ou logo  que começamos a carreira...

Tenho notado certo ar opressivo no Instituto. Tenho a impressão de que todos andam esquivos, de que ninguém pára nos corredores para conversar, só para não ter que comentar os desaparecimentos, um fenômeno que, afinal, não tem para nós uma explicação racional, científica – pelo menos em moldes ortodoxos – e isto nos deixa inquietos. Talvez porque cada um desconfie do que vê. Mas sei que acontece o mesmo nos outros laboratórios e que todo mundo se comporta como eu. Recomenda discrição aos estudantes, não quer que o assunto seja ventilado, finge que são fatos ocasionais. Mas já anda um certo ti-ti-ti entre eles, há pós-graduandos de um laboratório com namorada ou amigos no outro. E vai acabar transpirando, isso vai. Nem sei como a imprensa ainda não nos procurou.

Ando cada vez mais interessado nos aspectos científicos da questão, nas causas e possíveis explicações desses desaparecimentos. Alguém deveria estudá-los, mas descobri que não conheço nenhum especialista na área nem em área afim. Talvez algum físico? Então resolvi, eu mesmo, documentá-los. Postei um aluno de iniciação científica perto de uma bancada e, quando a centrífuga refrigerada começou a empalidecer, ele gritou. Corri com a máquina e tirei várias fotografias de diversos ângulos, desde o começo até o fim do fenômeno (por sorte, levou ao todo vinte minutos – nem mais, nem menos). Mando-te uma das cópias.

Esta foto foi tirada da porta (eu de costas para ela). Ao lado do espaço vazio correspondente à centrífuga refrigerada, havia a bancada, com uma centrífuga clínica, um banho-maria e alguma vidraria. (Você se lembra bem do laboratório, não?) Então o que apareceu foi isto que você vê. Não é interessante?  A sala arruinada, os montes de lixo e entulho, é tudo o que aparece em todas as fotos. É lógico que criei um caso na loja, reclamando que me haviam trocado o filme, o sujeito garantia que não, criou-se aquele clima desagradável, e, quando cheguei ao laboratório, vi que, no canto da parede, há uma pequena infiltração em feitio de borboleta como dificilmente haveria igual em outro lugar. A ponta da asa aparece do lado superior esquerdo da cópia que te mando, indicada pela seta. Convenci-me de que as fotos não estão trocadas. E aí, o que te parece?

Vou ficando por aqui.  Escreva, ou te deixarei sem notícias. Mande dizer o que acha disso tudo. Um grande abraço,

Eduardo

 

Caro Antônio,

Escrevo-te com um misto de apreensão e alívio. Não sei o que seria pior. Continuar pensando que o meu laboratório era o único onde aconteciam coisas cada vez mais esquisitas (embora, no fundo, eu soubesse que não era, como te disse na outra carta) ou saber que o fenômeno é muito mais amplo e geral.

Andava aquele clima tenso. Afinal, fomos todos convocados para uma reunião da congregação. Ficou bem claro. Os desaparecimentos que venho relatando têm acontecido em todos os laboratórios.

Decidiu-se não tornar públicos os fatos mais estranhos, para evitar a intervenção da imprensa, o descrédito para a Universidade e, quem sabe, o pânico. Assim, peço-te que este assunto continue estritamente entre nós. Entretanto, vamos entrar em greve, em função da falta de verbas federais para a Universidade, em geral, e a pesquisa, em particular. Vamos ver se as coisas melhoram.

E Carol, como está? Sônia recebeu carta dela. É verdade o que me anunciou? Vem mesmo um novo herdeiro?

Parabéns. Um abraço grande e até a próxima,

Eduardo

 

Caríssimo Antônio,

Antes de mais nada, um abração pelo teu aniversário – é amanhã, não é? Espero que esta te encontre bem, assim como a Carol, Júnior e o projeto de baby.

Infelizmente não posso te dizer o mesmo. Perdoe-me incomodar-te com meu rosário de queixas. Mas lembras do meu espectrofotômetro? Era uma das poucas coisas que funcionava realmente bem no meu laboratório. Era razoavelmente novo (pelo menos, assim me parecia, talvez porque eu o mantivesse em bom estado), um equipamento excelente. Pois ontem ele se transformou, diante dos meus olhos, num aparelho imprestável, de mais de  vinte anos. Acho que não vou poder publicar os resultados sobre os quais te falei quando estive aí – creio que a revista não vai aceitar.

Além disso, no chão e nas paredes têm aparecido mais buracos. De início tentamos tapar com gesso, mas agora aumentaram. Ainda não sei se são ratazanas, toupeiras ou tatus. Depois do gesso, passamos para cimento e brita.

Começou também a faltar formol no anfiteatro de anatomia. Imagine o cheiro, e como os ratos se multiplicam! Os técnicos  andam agora armados com espingardas de chumbinho, paus e pedras. Soltamos gatos no nosso bloco, mas eles não são suficientes, urubus descem em espiral no pátio interno e, outro dia, uma hiena fugida do  Jardim Zoológico foi vista rondando o campus.

Bom, vou parar por aqui. Preciso ir ao médico. Hoje acordei afônico – deve ser gripe.

Carol recebeu a carta da Sônia? Ela, mal escreve, já começa a esperar a resposta. Lembranças a todos e até breve,

Eduardo

 

Antônio,

As aulas estão suspensas. Temos continuado o trabalho de pesquisa com enorme dificuldade. Continuamos levando papel higiênico, sabonete e agora, também, formol. Saiu uma liberação do nosso convênio, mas o departamento resolveu priorizar a despesa de obras e tentar remendar a estrutura arruinada do prédio, com medo de que este se desmantele de vez. Mas, como te disse, os buracos são cada vez maiores e nosso dinheiro some nas grandes brechas, deixando no ar o eco de um tilintar de moedinhas perdidas.                             

Você me pergunta pela gripe. Para te ser franco, não sei. O médico não achou nada, mas volta e meia acordo rouco, todo mundo anda assim lá no Instituto, deve ser alguma virose.  Espero que passe logo.

Obrigado como sempre, um abraço,

Eduardo

 

Caro Antônio,

Estamos em greve há dois meses. A imprensa mal toma conhecimento dos fatos. Talvez porque as várias comissões que têm ido a Brasília quase não foram vistas nem ouvidas pelo governo, que, a julgar pelas poucas matérias nos jornais e na TV, continua aberto ao diálogo. É possível que os sucessivos surtos de desmaterialização e perda de voz tenham a ver com isso.

A greve vai emendar com as férias. Acho que não é bom. Sem alunos, aí mesmo é que vão se esquecer da nossa existência. Às vezes, eu mesmo tenho dúvidas a respeito. É cada vez mais difícil atingir os laboratórios, através das galerias de corredores revolvidas pelos roedores que se multiplicam, alimentados agora de cal e cimento. Os alicerces do edifício começam a ser abalados e escapamentos de gás, pequenas infiltrações e focos de incêndio irrompem a cada instante.

Continuo indo ao trabalho todos os dias. Não sei porque. Acho que é uma espécie de compulsão. Ultimamente tenho impulsionado a centrífuga com o dedo e consigo mantê-la girando com a força do pensamento. Acho que isso é uma habilidade que se desenvolve às custas de muita vontade. Cada laboratório é uma ilha no meio do caos, uma balsa no meio do oceano, o navio foi a pique, a provisão de água é limitada e nós sabemos que não duraremos para sempre. Ainda assim, navegar é preciso. Nós e os navegadores portugueses. Heróico, não? Ah, desculpe a amargura, Sônia diz que ando insuportável. Mas até o Flamengo não ganha um jogo há séculos!

Se tiver um portador, mande mais um vidro de ATP e a conta. Como foram de congresso na Bélgica? Carol já está bem? Sônia me disse que ela andava enjoando muito. Espero que melhore logo. Ela manda um beijo e diz que escreverá de novo em breve.

Um grande abraço,

Eduardo

 

Antônio,

Não pretendia escrever tão rápido, mas as coisas se precipitaram: chegamos a um desfecho. Creio que, mais dia, menos dia, isso tinha que acontecer. Saiu alguma notícia por aí?

Foi anteontem. Cheguei ao trabalho cedo. Por incrível que pareça, estava contente. Era um desses dias muito bonitos de céu tão azul... Parei no estacionamento e me aproximei do prédio do Instituto assobiando, enquanto procurava a chave do laboratório no bolso. Quando levantei os olhos, estaquei perplexo.

A construção foi empalidecendo, empalidecendo, do velho corpo decomposto desprendia-se uma aura transparente e trêmula, enquanto ele se derretia como um sorvete. Fiquei paralisado um minuto – talvez mais, talvez menos, perdi a noção do tempo – e quando firmei novamente a vista, além de uma leve reverberação, só vi diante de mim um céu impiedosamente azul. Só lembro que os passarinhos cantavam, e uma cigarra louca anunciava o verão.

Por favor, vá procurando uma posição para mim, de preferência aí por perto de vocês. Lembranças para Carol e Junior.  Um abraço do amigo de sempre, obrigado,

Eduardo

 

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Publicado em:

O outro lado da ciência vol. II
Organizador: Leopoldo de Meis
Editora Vieira & Lent / 2006

POSTADO EM 05 DE ABRIL
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