Vestígios - contos, quase contos e personagens

Vestígios Logo


Branco

Oito anos depois da morte do marido, Maria chamou o pintor.

Ele viria finalmente pintar as paredes, os rodapés, as portas e umbrais do corredor, do banheiro e do quarto, marcados pela cadeira de rodas da doença. Também não queria mais aquela cor de gelo, que acabava por ser cinza, escolheu branco, nada de creme, queria branco, queria claro e alegre.

O pintor deu o orçamento e no dia seguinte chegou com o material e um ajudante. Lixaram, lixaram, lixaram, deram a primeira mão, e, depois de uma pausa de vinte e quatro horas, voltaram para a segunda demão.

Maria conferiu, pagou e eles se foram.

Nos primeiros dias, ela dormiu no apartamento do filho por causa do cheiro de tinta. Quando voltou para casa, um resto daquele cheiro áspero ainda a desacolheu, mas abriu as janelas, arejou os quartos, as correntezas cuidariam do resto.

Nessa noite, sonhou uns sonhos cansativos em que corria atrás de alguma coisa que não alcançava. Acordou mal dormida e, quando foi tomar café, descobriu que as marcas não tinham saído de todo, estavam mais fracas, talvez, mas persistentes.

Sentiu um cansaço enorme, cansaço de chamar o pintor, cansaço de lutar contra as marcas, valeria à pena? Mas tinha sido caro, queria um serviço bem feito, chamou o homem de volta.

Ele desconheceu a reclamação, deu o acontecido por desacontecido.

– Dona Maria, vou refazer o trabalho, só porque a senhora está pedindo, nos conhecemos há mais de vinte anos e eu nunca ia desconsiderar um pedido seu, seria uma desfeita, mas a senhora viu, nós lixamos tudo e demos duas demãos de tinta branca. E eu não estou vendo as marcas, acho que a paredes estão brancas e lisas, brancas mesmo.

– É, eu vi o seu trabalho, mas o senhor há de convir que, olhando bem, as marcas ainda estão aparecendo, não ficaram bem cobertas, sem falar que não está bem branco, acho que a tinta puxou e agora está quase cinza novamente. Eu queria branco, branco alegre, o cinza é triste, é feio, eu quero tirar o cinza da minha casa, da minha vida, eu falei para o senhor.

O homem não estava convencido, mas era amigo da família, tinha trabalhado para o pai dela, dona Maria era opiniática, não valia a pena discutirem, deu um suspiro e marcou outro dia para voltar.

Trouxe de novo o assistente.

 Lixaram, lixaram, lixaram, deram a primeira demão e, vinte e quatro horas depois, a segunda, já eram quatro demãos de tinta.

Maria dormiu de novo no apartamento do filho e voltou para casa, apreensiva.

Mas agora estava tudo branco, o teto ficou mais alto e o cheiro áspero a desacolheu com mais força. Afinal tinha conseguido, não havia sinal de cinza e as marcas tinham desaparecido de todo.

E em meio ao corredor muito branco, percebeu um vazio, uma falta, as paredes esfoladas, as marcas, percebeu que tinha sido uma traição apagá-las, sentia saudades delas. Então baixou a cabeça entre as mãos e chorou, chorou, desconsolada em meio ao nada, ao branco, ao branco de uma alegria que não chegava.

POSTADO EM 19 DE JULHO
comente

Nome

E-mail

Mensagem