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Bico-de-pato

Um tricô, laçada, um tricô, laçada, diabo de pontinho enjoado se a gente não presta atenção, erra tudo, outro dia desmanchei quatro carreiras, dois juntos, dois juntos, dois juntos, dois juntos, que fome, como é difícil fazer dieta, mas olha o tamanho da minha barriga, estou quadrada, e logo agora que o Admir anda me lançando uns olhares... um tricô, laçada, um tricô, preciso tomar vergonha, ter força de vontade. – Alzira! Vê, por favor, um pedaço de mamão cortadinho para mim! O quê? Lógico que é sem açúcar, pode pingar umas gotas de adoçante em cima! – Ainda bem que essa carreira é toda em meia. Logo o Admir, quem diria. Com aquela carinha de songamonga já está na terceira mulher, e agora se chegando pro meu lado... Também, te digo, não tenho nada com isso, nem conheço a mulher dele. Depois, solteiro não é noivo, noivo não é casado e casado não está morto. Um tricô, laçada, um tricô, laçada, só vi ela uma vez, toda espigadinha, com aquela cara repuxada de plástica. E magra como a necessidade. Está bem que ser magra é melhor, qualquer modelo de vestido assenta, eu que o diga, mas assim também é demais, nem parece mulher, o peito chato, dois juntos, dois juntos, dois juntos, dois juntos. Se eu emagrecesse uns cinco quilos, ficava bem. Talvez três, senão o busto pendura demais. Depois é mesmo o meu tipo. Mas já viu que indireta, outro dia, o Admir dizer na minha frente pro Carlos Alberto, que mulher cheinha é mais sexy? Um tricô, laçada, um tricô. Agora é meia.

Mas essas sobremesas da Alzira são uma tentação. Se não fosse o Paulinho gostar tanto, eu mandava ela parar de fazer. Mas quem tem filhos e netos não é mais dona de si. E essa agora da Cláudia, de arrumar mais um! Que falta de juízo... Coitado do Luiz Otávio, ainda nem arrumou a promoção... Enfim não digo nada. Sogra tem que ficar calada. – Alzira, me vê agora um pedacinho de pudim? Bem pequenininho, sim? – Pelo menos não comi o açúcar do mamão. Se não fosse por esses quilinhos a mais, até que tenho um corpo bem bom. Preciso é fazer uma depilação, comprar um creme hidratante, tomar um banho de loja. Um tricô, laçada, um tricô, laçada, ah, meu Deus, essa carreira está com um erro bem no começo, vamos ver se consigo desmanchar sem perder as malhas. Mas se o Admir me convidar para sair, eu topo, juro que topo. Nem que seja pra ir parar num motel. O meu medo é dar de cara com um dos amigos do Luiz Otávio. Já pensou que situação? Mas azar, sou viúva, maior, vacinada. Esses meninos pensam que depois dos sessenta a gente não liga mais para sexo, não tem mais apetites, que isso vai terminando assim, sem mais aquela. Eu é que sei, quando acordo toda suada, com taquicardia, e não durmo mais. Todo ser humano tem lá suas necessidades. Outro dia sonhei com o Admir, pronto, posso começar de novo a carreira, um tricô, laçada, um tricô, dois juntos, dois juntos, dois juntos, dois juntos, ai que sonho! Só de lembrar me dá um arrepio, fico de boca seca. Nós dois naquela praia deserta, ele me beijando, as ondas lambendo o meu corpo, o vestido todo colado na pele, que engraçado, agora é que estou lembrando... a Deborah Kerr muito branca de maiô preto, e o Burt Lancaster... Meu Deus, vi isso há séculos! “A um Passo da Eternidade!” Naquele tempo a gente achava essa cena tão forte, dois juntos, dois juntos, dois juntos, laçada, um, laçada, um, hoje em dia com essa sem-vergonhice no cinema, só os títulos dos filmes... segunda-feira vi o anúncio de um: “Escola de Taradas”, fiquei curiosa de ver, quem não fica, mas tenho vergonha, depois acho que é só porcaria, a gente deve ficar com nojo. A Nadir foi ver um filme desses e contou que até sexo com bichos eles filmam! Bem louca, a Nadir. Disse que o porteiro olhou para ela com uma cara... – Alzira! minha filha, os biscoitos estão cheirando, desliga o forno senão queima! – Essas empregadas, se a gente não controla, são um caso sério. Tenho até medo de sair e, na volta, encontrar o apartamento pegando fogo. Deixa eu bater na madeira, nem é bom falar. Laçada, um tricô, laçada. E isso não é nada, dois juntos, dois juntos, dois juntos, o melhor foi o outro sonho, aquele do bordel. Com os cabelos soltos até a cintura, assim meio para o exótico, muito maquilada, de quimono de seda vermelha com um dragão nas costas, eu até que estava bem naquele quimono, a cintura marcada pela faixa, e o Admir enfiando a mão na altura das coxas, começando a tirar uma das ligas bem devagar, a meia preta... sempre me olhando nos olhos; depois ia enfiando a outra pelo peito, ai como está abafado, preciso abrir a janela, já estou com as minhas ondas de calor. – Alzira! me vê por favor um lencinho na minha bolsa, essa que está aí no quarto. E depois abre a janela da cozinha para encanar o ar! – Ai, com essa brisa melhorou, mas imagina, eu já avó, e com dragão nas costas. Mas sonho é assim mesmo. Em sonho a gente não se dá ao respeito. Deus que me perdoe. Mas também esse homem me olha de um jeito que me deixa fora do meu juízo. – Alzira! vê uns biscoitinhos desses que saíram agora. – Ai, adoro biscoito amanteigado, devem estar uma delícia, quentinhos. – O quê? Deus me livre! Vê uns cinco, no máximo!

Tricô, laçada, um, laçada, aliás preciso fazer mão e pé, e comprar umas lingeries caprichadas. Uma mulher não pode relaxar em certos pormenores. Imagina, ser apanhada desprevenida, assim de uma hora para outra, é até constrangedor. Com o Luiz vivo, eu cuidava demais da minha roupa de baixo, também ele fazia questão. Nunca vesti uma peça de roupa branca, um biquíni que fosse, de algodão. Tudo seda aberta em rendas, no máximo nylon... laçada, um, laçada, um. Quer dizer, só depois que o casamento entrou na rotina. Mas assim mesmo, de vez em quando em comprava uma camisola vermelha com rendas e fitas pretas, como daquela vez em São Lourenço, que era pra dar uma balançada nele. Que homem é tudo igual. Só pensam em sexo e comida.– Alzira, quer atender à porta, por favor? – E o Admir, aquele ali é capaz de ser chegado até a umas roupas pretas, com botas, correntes, chicote e tudo. Diz que tem uns homens que só se excitam assim, que coisa esquisita, credo... Ai, tem um erro lá embaixo!

– Oi, meu amor! Paulinho vem cá, coisa rica da vovó. Oi, Cláudia, está boa, minha filha? E o Luiz Otávio, vem encontrar vocês aqui, ficam para o jantar? Mas vem cá, coisa linda, você vai querer sorvete ou pudim? Tem uns biscoitinhos que saíram agora mesmo do forno, você vai adorar. A vovó vai ver. – Alzira! Não, não mexe aí, no tricô da vovó não se mexe.

– Que lindo, dona Carmen, é ponto de andorinha?

– Ah, gostou, minha filha? Não, esse não é o de andorinha, esse é o bico-de-pato. Esse ponto, além de muito leve, faz um trabalho rico, vistoso mesmo. Mas acabei de descobrir um erro, vou ter que desmanchar um pedação! Acho que estou ficando velha para fazer ponto trabalhado. Não tenho mais concentração nenhuma, erro a toda hora. Às vezes fico até preocupada.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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