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Teresa

Faz um ano da morte de Teresa. Levaram-na os ventos de outubro, deixando Henrique às voltas com três adolescentes, o mais velho com dezesseis anos, as meninas com menos de treze. Recebeu a notícia naquela tarde de terral guerreiro e inverossímil, nem tinha dormido direito na véspera, as janelas arfando e batendo a noite inteira. Não pode acreditar, ficou paralisado por um momento interminável, até que o corpo todo começou a tremer, desligado da sua vontade.

Dos primeiros tempos, só sabia desse medo sem idade. Do remanso escuro do sono, entrecortado por clarões sobressaltados (“aquilo”) e de onde emergir à tona dos dias era uma árdua tarefa. Manhã após manhã, o despertar como um tapa no rosto, sol cegando um olho aberto à força – ofício de sobreviver. Lembranças confusas do enterro, quando assistiu a tudo como um autômato distante e incapaz de chorar – nojo do sofrimento. Não teve coragem de olhar o rosto da mulher nem de se despedir; odiava os rituais da morte. Fugiu dos amigos e dos cumprimentos, mal terminada a cerimônia, por uma alameda lateral. Errou entre as sepulturas meio cego, até achar o caminho da porta; para só então perceber que os meninos tinham ficado para trás, junto com os avós. Em criança fugira assim de um bando de mascarados, numa tarde de carnaval. Pavor de um deles, vestido de caveira. Foram achá-lo no quintal, agachado atrás do pinheirinho.

A cada manhã acordar: a custo fazer a barba diante do espelho, a custo tomar café. Aos poucos, uma correnteza arrastava-o para as obrigações do dia, os ombros curvos, dores nas costas. Aos poucos emergia para o trabalho. Não deixava ninguém tocar no assunto. Bicho ferido, rosnava para quem se aproximasse. Sozinho, sim, às vezes se pegava divagando, conversando com Teresa, lambendo as feridas. De novo e de novo.

À noite, consolo e agonia, podia encontrá-la. Sempre o mesmo sonho: tinha que atravessar um bosque levando a mulher às costas. Os dois em silêncio. Caminhava horas e horas embaraçando-se em cipós, sem ver luz nem céu. Os filhos esperavam-no em algum lugar distante, numa casa toda fechada, se não chegasse logo, antes da noite cair, alguma coisa podia acontecer-lhes. Teresa pesava cada vez mais, pesava-lhe o silêncio dela, percebia que estava morta e ele perdido, sem bússola nem mapa. Sabia que se a deixasse para trás seria muito mais fácil encontrar o caminho e socorrer os meninos; mas agarrava-se à sombra com força, não podia deixá-la, estavam presos. Os corpos confundiam-se e aquela metade fria e silenciosa ia tomando conta dele, já quase não podia se mover. As crianças longe, e ele como um boneco de pau. Queria correr, queria gritar... Acordava alagado de suor.

 

Um ano. De novo os vento carregando as folhas. A data passou tristonha, entre as muitas viagens, não pode ir ao cemitério com os garotos, antes assim, tinha horror de cemitério e de igreja. Agora que estava melhor, queria levá-los ao sítio, botava um CD no aparelho de som, estava ensinando a do meio a dançar. Mas outro dia, quando aumentou o volume e serviu a segunda dose de uísque, viu os olhos da pequena espetados nele, antes de sair da sala correndo – o mesmo olhar claro da mãe, sentiu-se de repente nu. Foi encontrá-la no quarto, deitada de bruços; puxou conversa, ela mal respondeu. Precisava dar-lhe mais atenção, aproximar-me dos três. O rapaz saia quase todas as noites, também já tentara conversar... Mas é tão distante o país da infância.

 

Acordou de madrugada arquejante. O mesmo sonho de sempre. Abria os olhos ainda agarrado à mulher, não queria deixá-la. Para encontrar com dor a cama vazia. Mas dessa vez foi diferente: do fundo da morte ela abriu os olhos e disse num lamento, numa voz tristíssima e remota:

– Estou tão cansada!... – e ele ficava feliz porque, depois do longo silêncio, Teresa afinal lhe falava. Uma tristeza profunda invadiu-o, os meninos dormiam, a madrugada mal apontava, vento fresco lambendo as copas dos oitis. Levantou-se pé ante pé, vestiu-se, o carro conduziu-o ao cemitério.

Entrou no edifício principal, já raiava o dia, subiu as escadas e procurou a capela. Havia duas pessoas sentadas e, junto ao caixão, uma mulher vestida de preto, olhos inchados. Pela primeira vez, olhou bem a cara de um morto. Deu um abraço na viúva e ficou de pé, as mãos pendidas, vendo com uma simpatia triste as cerimônias da morte. Quase participante.

De novo embaixo, a loja aberta, comprou flores. E hesitou um instante meio sem jeito, o ramo na mão, sentia-se estúpido assim, medo do que ia fazer. Agora as costas começavam a doer, tomou a ladeira lateral e caminhou entre as sepulturas sem saber se acharia o caminho.

Chegou ao túmulo sem ar, o sol começava a faiscar atrás do morro, sentou-se exausto sobre a lápide e acendeu um cigarro. Soprou a fumaça, e pousou os olhos no vazio, lembrando a primeira vez. O riso claro, a massa de cabelos crespos, mais finos na nuca, os fios entrando em sua boca: Teresa. E agora aquele pedaço morto do corpo, enrijecendo-lhe as costas, doendo, doendo. O sonho da madrugada voltava. Aos fragmentos, um pedaço esquecido: era Teresa quem o carregava. É lógico que era. Sempre fora ela a que provia, o colo, o ninho. Por isso se queixava:

– Estou tão cansada... me deixa agora. – Punha-o no chão e ele era um recém-nascido, espantava-se de saber andar. Ajoelhou-se, menino, recitou de cor uma oração antiga. Pegou então as flores com as duas mãos, e com muito cuidado, numa ternura toda ritual, depositou-as sobre a sepultura. Criança adormecida que se coloca no berço. Passou uns dedos vagarosos sobre a pedra lisa. Depois sobre as flores crespas, roxas e veludosas. (Posso te deixar agora? O suspiro fundo. E dentro do peito, de novo o sorriso claro, a penumbra morna. Os corpos se separavam e eles ainda se acariciavam antes de dormir. Ou começar outra vez). Ajeitou melhor as flores, tinha que deixá-la. Fumou ainda um cigarro e, com um suspiro, levantou-se devagar, tomando a alameda em direção à porta.

Apressou o passo, queria tomar café com os filhos antes da escola. Deviam estar mesmo acordando. Mais leve, percebeu que sabia o caminho, e em casa, as janelas estariam abertas para o dia.De longe, enquanto se afastava ligeiro, lançou um último olhar sobre o ramo roxo estendido no túmulo. O ar parado, cada coisa em seu lugar. Só então lembrou o nome das flores. Eram “Saudades”.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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