Vestígios - contos, quase contos e personagens

Vestígios Logo


A vizinha (conto antigo)

Quando o Serviço de Vigilância Sanitária bateu aqui pela primeira vez, era setembro. Lembro-me porque de manhã havia saído para compras e, na Praça da Liberdade, os ipês estavam floridos.

Foi na hora do almoço. Eu estava servindo a galinha – carne preta para Gustavo, o peito para os meninos, e ia pôr no meu prato as asas e o pescoço (sempre foram meus pedaços preferidos, não é por que me sirva por último, não) – quando tocaram a campainha. Efigênia foi atender e voltou com o recado: qualquer coisa sobre os porcos.

Gustavo olhou para mim e fechou a cara; num relance adivinhei que teríamos aborrecimentos. Há muito tempo que eu lhe avisava que isso de criar porcos no quintal, dentro do perímetro urbano, não ia dar certo – mais dia, menos dia, algum vizinho iria chamar a Saúde Pública. Ele devia mandá-los para a chácara. Mas Gustavo sempre adorou bichos. E nunca teve medida. Em vez de três ou quatro galinhas soltas, queria logo duas dúzias, no galinheiro; sempre tivemos cães e gatos. E agora essa, dos porcos.

Ele pediu licença e foi atender os fiscais. Depois de uns quinze minutos, voltou furioso. Além da multa, tínhamos três dias para matar os porcos e desmanchar o chiqueiro – eles voltariam para conferir. E de fato voltaram, na semana seguinte.

Comemos carne de porco por um mês. Paulo comia sem reclamar, mas Tavinho choramingava, dizia que não queria comer bicho conhecido – acabou não comendo mesmo. E Paulo implicava, estalando os beiços e dizendo que estava uma delícia. Precisei salgar uns pedaços, guardar outros na geladeira – e ainda dei um bocado para as vizinhas do lado. Gustavo não deixou dar para Dona Afonsina. Achava que a vizinha dos fundos é que tinha chamado os fiscais. Ficava mais próxima do chiqueiro, do cheiro, das moscas. E depois, dona Afonsina, além de solteirona, sempre teve fama de bruaca mesmo. Tive que concordar com ele, havia de ser ela. Mas, apesar de Gustavo ser meu marido, ao lado de quem eu deveria estar em qualquer circunstância, confesso que me aliviou ver o quintal limpo, sem sujeira nem moscas, sem perigo de bicho-de-pé para os meninos. Pouco tempo antes, Paulo tivera um que não saiu inteiro, a bolsa arrebentou espalhando os ovos, quase arruinou o dedo do menino, foi uma trabalheira tratar.

Passaram-se uns seis meses e eis que me aparece de novo Gustavo, dessa vez com um casal de bacorinhos. Eram bem novos. Embora já comessem restos de comida, gostavam ainda de mamadeira. Os meninos se acostumaram com eles, que andavam soltos pelo quintal. Receberam os nomes de Didu e Dadá. Eram muito brincalhões, especialmente o Didu. Quando alguém se aproximava, ele puxava a perna da calça ou a saia e se deitava de costas para que lhe coçássemos a barriga com um pauzinho. Houve um dia em que Augusto, filho de minha prima Dinorá, foi encontrado no quintal, coçando a barriga do Didu e chorando porque não conseguia se livrar dele.

Enquanto eram pequeninos e andavam soltos, não tivemos problemas. Mas ao fim de uns tantos meses, foram se tornando uns porcos grandalhões, que comiam tudo que passava pela frente, meio assustadores para as crianças, cada vez mais gordos e feios. Gustavo mandou fazer novo chiqueiro, Dadá deu a primeira cria e eu voltei a lhe avisar:

– Gustavo, meu filho, olha o que aconteceu da outra vez. Você sabe que é proibido. Por que não manda esses porcos para a chácara? O chiqueiro chama atenção, junta moscas, não demora muito, os vizinhos vão denunciar novamente.

Acho que foi por perto da Semana Santa que os funcionários vieram. Eram os mesmos.

– O que é isso, Dr. Gustavo? Nós não combinamos que o senhor não ia mais criar porcos dentro do perímetro urbano? Infelizmente temos que cumprir a lei. E para os reincidentes a multa é mais alta.

Desta vez o trabalho foi maior porque os meninos nem podiam ouvir falar em matar Didu e Dadá; foi preciso levá-los para a chácara.

Por essa altura, Gustavo não cumprimentava mais Dona Afonsina. Quando ela passava pela rua, sempre ladeada por uma das agregadas, ele virava a cara. Eu não sabia como me comportar, mas Gustavo era meu marido, eu devia estar a seu lado em todas as situações, assim deixei também de falar com a vizinha. Ela não se deu por achada. Até hoje, três anos depois da morte de Gustavo, quando cruzamos pela calçada, atravessa a rua e vira a cara de propósito. Enfim, não posso culpá-la, quem começou fomos nós. Mas ela sabe bem que fiz aquilo por ele, poderia me perdoar. É que Dona Afonsina sempre foi muito teimosa mesmo.

Gustavo ainda criou porcos em casa por duas vezes – ao todo, foram quatro.

Da terceira vez – uns dois anos depois da primeira – eram duas leitoas e um cachaço – chegaram já crescidos – e a Saúde Pública veio logo.

– Essa bruaca tem cada vez menos paciência – ele disse. Não deixou nem os pobres bichos esquentarem lugar.

Mas da última, foi uma única bacorinha. Essa, sim, tão novinha que foi criada por ele e pelos meninos na mamadeira. Era um bichinho bonito, com um manto ralo de seda branca sobre a pele estalando de tão cor-de-rosa. Gustavo mandou fazer um chiqueirinho pequeno, de cimento, que era lavado duas vezes por dia com um esguicho de mangueira. E ela era limpinha, vivia deitada com a barriguinha na água, Gustavo disse que dessa vez não ia juntar moscas nem lama – e não juntou mesmo.

Ninguém chamou a Saúde Pública e a porquinha é essa leitoa enorme que está aí – ah, me afeiçoei a ela também. Talvez porque foi o último bicho que Gustavo criou – por essa época ele adoeceu e o médico me avisou que não iria durar muito.

Quando as pessoas adoecem, a gente fica pensando, pensando, dá valor a tantas coisas que não dava antes, se arrepende de outras... De lá para cá, enquanto ele viveu, nunca mais tive coragem de chamar a Vigilância Sanitária – nem de me desfazer da porca, depois que ele se foi.

POSTADO EM 19 DE JULHO
comente

Nome

E-mail

Mensagem