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Ainda Paris

Para Gabriel

O casal estava na fila, um pouco à frente de nós, esperando por uma mesa. Já se passaram vinte anos e ainda posso vê-la, a cabeça levemente inclinada, as mãos às costas, apoiada numa coluna. Acabávamos de passar a manhã no Quay d’Orsay e o restaurante do Museu estava repleto. Ela devia ter uns cinquenta e poucos anos, decididamente mais que os meus quarenta e cinco, que pareciam trinta e cinco. Olhava o marido com um olhar terno e, quando falou, a voz era também açucarada, um pouco fina e quase boba, ou vulgar, no sentido de comum. Os olhos, esses eram de gazela, zebra ou girafa, algum bicho ruminante e calmo, dócil e paciente.

E com aquela voz melada e boba, dirigiu-se a ele:

– Thank you, darling, you brought me to Paris!

O marido? Esse não disse nada, só olhou-a satisfeito do alto do pedestal onde ela o colocava e ajeitou o nó da gravata com a nuca esticada, recuando um pouco a cabeça como um galo ou um pavão, feliz com a frase dela, com seu poder de fazê-la feliz, com o poder de seus dólares trazendo-a a Paris. Com certeza, para um hotel melhor que o meu. Para completar, ela esticou o braço e, com um tapinha carinhoso, espanou algum grão de poeira que maculava a lapela do sublime cônjuge.

Olhei-os superior, talvez um tanto desgostosa, quase com nojo, eles representavam tudo que eu não queria para mim (ah, não queria?...), eu, a mulher independente, que trabalhara para comprar a passagem com o seu dinheiro, para comprar seus próprios dólares, esses que eu não conseguia gastar sem a aprovação do meu marido. De qualquer forma, eu me esforçava para não ter sido trazida a Paris, queria ter vindo a Paris. Mas por que, se eu me sentia assim superior, por que aquela mulher me irritava, por que sua satisfação me dava raiva, era quase uma ofensa, um ultraje, uma afronta a mim e a todo o meu esforço, a todas as horas pagas de psicanálise? Ao nosso hotelzinho tipo econômico (está ótimo, é só mesmo para dormir...). Eu, com o meu casamento e minha vida em uma de suas muitas crises, eu, nem tão feliz assim de estar em Paris, fracassando em fazer da viagem uma segunda lua de mel, e, naquele momento, com os pés doendo e as costas começando a reclamar, querendo desgraçadamente uma cadeira! Eu, a bonitinha-feiozinha, sempre meio troncha, com alguma coisa intrinsecamente errada em mim e no que quer que eu tocasse. Eu, a canhota, a gauche, sempre com um número ímpar de mãos. Seria inveja por aquele seu ar de gazela agradecida, pelo seu sorriso de anúncio de sabão em pó? (Olhem como eu lavo prazerosamente dezenas de camisas imundas, montanhas de roupas manchadas, e vejam como elas vão ficando alvas e eu vou ficando leve, feliz por ser trazida a Paris por esse marido poderoso, vejam como nem sinto meus pés, que mal tocam o chão!). Quer dizer que, além de tudo, eu era invejosa?


Como eu disse, passaram-se vinte anos.

E eis me aqui de novo em Paris, os cabelos grisalhos, desta vez, trazida, sim, pelo marido. Para passar uns dias, apenas, acompanhando-o a um congresso, hospedada em um hotel maravilhoso. Eis me aqui sentada, neste restaurante, para jantar. Sem ter ido a museus, que todos já foram vistos e apreciados, felizmente, porque agora as costas doem mais.

O restaurante é lindo, estilo Art Nouveau, o salão principal com uma claraboia onírica, levo um cartão postal para mostrar aos filhos e noras.

Estico meu braço por cima da mesa e pego a mão dele. O escolhido e re-escolhido tantas vezes, a cada nova crise do casamento, crises agora tão espaçadas que nem me lembro de quando foi a última. Também não importa mais, pois, há muitos anos já, sabemos que fazemos um par, que nenhuma crise nos separará, passamos para a outra margem, aportamos num lugar onde as palavras ditas em frente ao altar se tornaram finalmente verdadeiras, à custa de tanto lutarmos por elas.

Pego a mão dele e digo, com um sorriso:

– Obrigada por me trazer a Paris.

Ele me devolve o sorriso, sem arrumar o nó da gravata, posso jurar, e não é só por estar de camisa esporte. Mas também juro que não faz ideia do tamanho da declaração de amor. Nem precisa. Nem eu conto, para não perder a graça. O momento e a frase ficam cuidadosamente guardados dentro de mim, junto com muitos outros, numa carinhosa redoma. Lá, onde alvas camisas giram em meio à espuma e toda nódoa se desfaz.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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