Vestígios - poemas escolhidos > Eros

Vestígios Logo


Dois poemas da paixão

I

Anoiteço.
Em algum lugar
que braços recolhem lenha
para a fogueira?
A buganvília floresce, floresce,
floresce
até se apagar.

Os potes de violetas sobre o aparador
na penumbra do vestíbulo.
Mamãe regava-as, ritual.
E era moça e fresca que nem elas.
(Que fogo agora a consome?
Labaredas de terror,
a mão em garra,
e esses olhos como duas pedras,
duas setas de medo.)

Pego o metrô para o trabalho,
todo dia, todo dia,
sem apelação.
O cego, na saída para a rua,
canta com voz forte, choramingada,
cantilenas de jamais.

Meu Deus, meu Deus,
por que é que essa buganvília
não para nunca de florescer?


II

Teu sangue me chama de longe,
escura cisterna.
Tambores, atabaques, do fundo da terra,
vibram na sola dos pés,
teu sangue, meu sangue chamando.

Papéis assinados, contratos, escrituras,
vitrine de livraria.
(Teu sangue pulsando, tambores de luta.)
Recital de piano, a mesa do chá, toalha rendada, flores
em jarra de cristal.

Teu sangue me chama, me chama,
vem escorrendo de longe, pesada triste língua,
invade meu quarto, rasteja
em direção à cama.

Recebi hoje o contracheque. Na loja
as mulheres se acotovelam
para comprar maquilagem.
As vitrines já se preparam
para o Natal.
Teu sangue, teu sangue, meu sangue: atabaques.
Além da inteligência,
além de toda vontade,
esse pulsar de uma artéria,
esse contrair da víscera,
esta saudade na pele.

As imagens cobertas de roxo: Paixão.
Em algum lugar, que braços recolhem lenha
para a fogueira?
Os tambores não param nunca,
os tambores preparam a festa,
os tambores preparam as núpcias
e o sacrifício.
(Sobre a toalha branca
a nódoa escura do vinho.)

Floresceram para olhos nenhuns as buganvílias,
tão viúvas, florescendo as buganvílias
no jardim abandonado.


Veja o livro publicado







comente

Nome

E-mail

Mensagem