Vestígios

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Vestígio
s.sm 1. Rastro; pegada.
2. Aquilo que fica ou sobra do que desapareceu ou passou. 3 Quantidade muito pequena.

dicionário Aurélio on line


Entre a palavra e o silêncio

Leitura realizada na Estação das Letras em 18/03/2016

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Suzana Vargas a acolhida maternal no espaço da Estação das Letras culminando com o convite para esta leitura.

Vou fazer uma pequena introdução. Quero começar dizendo uma coisa importante, mas que talvez seja óbvia – basta olhar para mim – eu sou um poeta do século XX e é assim que eu queria ser considerada e julgada. Ou, se não for uma pretensão muito grande, um poeta não datado, ou pelo menos pouco datado, porque me expresso de forma tradicional e não estou ligada a nenhum movimento literário.

Sou nascida em 1940, sofri a influência de pais do início do século e de um avô materno nascido em 1874. No colégio, aprendi os poemas infantis de Olavo Bilac. Quando adulta, entrei em contato com poesia, lendo Manuel Bandeira, Drummond, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Garcia Lorca, Rilke, Neruda, Mario Quintana, Vinicius de Moraes, João Cabral de Mello Neto, Mario Quintana e outros, muitos ainda vivos àquela época. Uma época de ouro, quando ainda viviam Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Isso, para citar os mais importantes.  

Comecei a escrever no final dos anos 60 e, na década de 70, publiquei alguns poemas em suplementos de jornais, o primeiro livro, Invenções do Silêncio, saindo em 1980. Os contatos com os jornais, devo-os a Stella Leonardos, e com a José Olympio, que me publicou, a Ivan Cavalcanti Proença, com quem fiz oficina literária. Devo ainda um grande estímulo a Helena Jobim, minha prima, primeira leitora e incentivadora, e a Carlos Drummond de Andrade a quem mandei poemas, como muitos da minha geração, e que me doou uma atenção generosa e inesquecível durante alguns anos. Quatro últimos nomes devem ser citados – os do poeta Reynaldo Valinho Alvarez e de Maria José de Sant’Anna Alvarez, como incentivadores e amigos. E os de Rose Marie Muraro e Helena Ortiz, editoras simpáticas e acolhedoras.

O ano de 1980 foi decisivo porque, além do primeiro livro, recebi o prêmio Emílio Moura, da Coordenadoria de Cultura do Estado de Minas Gerais, por Rede Fluvial, que viria a ser meu segundo livro. Acho que foi então que resolvi seguir em frente. Mais tarde vieram outras manifestações de apreço, fui finalista em alguns concursos, mas aquele ano ficou marcado como o início.

E já que estou me apresentando, vou começar lendo um pequeno poema chamado Cartão de Visita, que fala de mim e um pouco do tempo e seus desencontros, como esta leitura, talvez um tanto extemporânea:

 

Cartão de visita
(em Cadernos de geografia)

Chegaste tarde para este acontecer
e te perdeste em evasivas.
Chegaste cedo demais para as promessas
que não puderam se cumprir.
E toda a vida foste sempre visitante
indecisa entre o ser e o assistir.


Outro poema que me apresenta é Linhagem:,

 

Linhagem
(em Rede Fluvial)

Tive um dia sobrenome
pelo vento desmanchado.
Trazidos do nascimento,
só conservo o rosto e um nome
e o mapa nas mãos riscado.

Trago no olhar desatento
o sobrenome emprestado
daqueles que sem raízes
renascem cada momento
numa família inventada

 

A descoberta da poesia em geral, e da minha em particular, correspondeu à descoberta da minha identidade. Eu diria que os poemas me explicam e me explicitam, que escrever poesia sou eu. Esse encontro aconteceu aos quase trinta anos, quando eu já era casada e mãe de três filhos e terminava o curso de História Natural, preparando-me para fazer pesquisa. E então me lembro daquela frase maravilhosa de John Lennon: “a vida é o que acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos.”

Quando comecei a escrever poemas, a cada novo texto havia o prazer e o frescor da descoberta inesperada de alguma coisa nova, que eu não me saberia capaz de escrever por mera vontade, uma voz que eu reconhecia ao longe e que era preciso seguir, trabalhando o texto para melhor expressar seu sentido, aquele sentido de início apenas tangenciado, intuído, e que eu ia desentranhando aos poucos e tomava corpo à medida que avançava. Imagino que seja o mesmo prazer de um cachorro que é apresentado ao cheiro da caça e que logo se põe a descobrir e seguir-lhe a trilha pelo faro. Só que neste caso o poeta é a um tempo caçador e caça. E o poema é a trilha.

Este trabalho se faz na interface entre silêncio e a palavra entre inconsciente e consciente, intuição e inteligência, escuro e claro, e não é à toa que meu primeiro livro, publicado em 1980, se chamou Invenções do Silêncio.

Para esta leitura não dividi minha poesia cronològicamente. Escolhi uma divisão temática, como, aliás, temática é divisão dos meus livros.

Mas vou ser bem econômica juntando os temas em três grandes grupos de acordo com a sua afinidade:

Vida, morte tempo: compreendendo eros (num sentido amplo: de vida, amor e, desencanto), a construção do rosto (ou da identidade), poemas da idade madura e poemas de adeus – um passeio pela vida, suas diversas fases, perdas e ganhos, tal como experimentados. Esse tema é mais abrangente que os outros e sua leitura será mais longa.

Perfis, cotidiano: tratam do mais externo. Falam de um animal ou planta, uma pessoa ou situação do cotidiano.

Noturnos – Poesia: noturnos, sonhos, estranhamento/encantamento (que tratam do próprio clima onde surgem os poemas), e o poeta e sua oficina (sobre poesia e sobre escrever poesia, num sentido mais consciente)


Pela exiguidade do tempo nem todos os subtemas estarão exemplificados, mas lerei alguns poemas dos três grupos. A minha escolha se deveu, não só à predileção por certos poemas, como, em se tratando de uma leitura, escolhi que atraem mais pela sonoridade e simplicidade, excluindo os prescindem mais de uma segunda ou terceira leitura (na verdade, todos precisam).    

Antes de entrar nos temas, vou ler um dos poemas introdutórios de Invenções do Silêncio, que fala justamente da palavra e do silêncio, e que é dirigido a um interlocutor, possivelmente ao leitor. Portanto, sintam como se fosse dirigido a vocês.

 

A palavra pronunciada
era coisa bem pequena
diante do espaço maior
onde se cria o poema.
Buscava colher palavra
pra dar-te, nas duas mãos,
mas meu peito se calava
e nem a mim me contava
seu segredo cego e vão.
Melhor dar-te meu silêncio
– dedo no gume da faca,
frescor de mão espalmada
em parapeitos de prata.
Ou dar-te esse outro silêncio:
janela aberta na bruma,
vidro embaçado que esconde
construções de sal e espuma.
Que encontres esse silêncio
– área das coisas sem nome –
no meu olhar sem momento.
Que imagens e sons antigos
cruzem cegueiras, ausências
neblinas de esquecimento,
e pela mão dos sentidos,
te firam, como um presente.
E se em mútua travessia,
calamos o que resiste
a entendimento mais claro,
que, afogados em silêncio,
nos encontremos no espaço,
onde vento, verde e bruma
– alheios a espaço e tempo –
revelam rendas de sal,
constroem jardins de espuma.

 

Começaremos então com o primeiro grupo.

Vida, morte tempo

  

Canção
(em Cantares) 

Falo de coisas que retornam
como as tardes de primavera,
depois as chuvas de verão;
falo de barcos que regressam,
falo do sim, falo do não.

Falo de coisas que retornam
como as flores na primavera
ou as aves de arribação.
Falo do gosto dos teus beijos,
da minha febre em noites mornas,
de saudades doendo em vão.

Falo de coisas que apetecem:
cheiro de doce na panela,
cheiro de fruta na estação,
vozes de rolas nos beirais,
dos meus seios nas tuas mãos.
Cheiro de fruta no quintal,
cheiro de chuva no jardim,
falo de coisas que maltratam,
falo do não, falo do sim.

Barcos que partem, barcos que voltam,
longes nas velas, luzes no cais,
voo de pombas nas tardes mortas,
falo de uns lábios buscando os meus
e, entre tantas coisas que retornam,
falo desse adeus depois da volta,
falo da volta, depois do adeus.

 

Dois Poemas da Paixão
(em Cantares)

I

Anoiteço.
Em algum lugar
que braços recolhem lenha
para a fogueira?
A buganvília floresce, floresce,
floresce
até se apagar.

Os potes de violetas sobre o aparador
na penumbra do vestíbulo.
Mamãe regava-as, ritual.
E era moça e fresca que nem elas.
(Que fogo agora a consome?
Labaredas de terror,
a mão em garra,
e esses olhos como duas pedras,
duas setas de medo.)

Pego o metrô para o trabalho,
todo dia, todo dia,
sem apelação.
O cego, na saída para a rua,
canta com voz forte, choramingada,
cantilenas de jamais.

Meu Deus, meu Deus,
por que é que essa buganvília
não para nunca de florescer?


II

Teu sangue me chama de longe,
escura cisterna.
Tambores, atabaques, do fundo da terra,
vibram na sola dos pés,
teu sangue, meu sangue chamando.

Papéis assinados, contratos, escrituras,
vitrine de livraria.
(Teu sangue pulsando, tambores de luta.)
Recital de piano, a mesa do chá, toalha rendada, flores
em jarra de cristal.

Teu sangue me chama, me chama,
vem escorrendo de longe, pesada triste língua,
invade meu quarto, rasteja
em direção à cama.

Recebi hoje o contracheque. Na loja
as mulheres se acotovelam
para comprar maquilagem.
As vitrines já se preparam
para o Natal.
Teu sangue, teu sangue, meu sangue: atabaques.
Além da inteligência,
além de toda vontade,
esse pulsar de uma artéria,
esse contrair da víscera,
esta saudade na pele.

As imagens cobertas de roxo: Paixão.
Em algum lugar, que braços recolhem lenha
para a fogueira?
Os tambores não param nunca,
os tambores preparam a festa,
os tambores preparam as núpcias
e o sacrifício.
(Sobre a toalha branca
a nódoa escura do vinho.)

Floresceram para olhos nenhuns as buganvílias,
tão viúvas, florescendo as buganvílias
no jardim abandonado.

 

Seta
(em Cantares) 

Voava cega
à volta de um ponto azul.
E mergulhei em repetidas nuvens
diferentes e todas iguais.

Mas fui sempre me escapando
– desconhecido e muito próximo mistério
reconhecível apenas em outros rostos,
como em espelhos, inclinada,
o eu alheio e emprestado,
som da própria voz ao telefone.

Cantava surda, sem nunca ouvir meu canto.
Voava – cega, cega –
em busca do meu próprio azul.

 

As Palavras
(em Cadernos de geografia) 

Onde ficaram as palavras
que desataram meus pulsos?
Andam pelas paredes, pelo teto,
escorreram simplesmente para o chão
sem deixar rastro?
Onde ficaram as palavras
transparentes, quase um sopro,
as poderosas suavíssimas palavras
que um dia amarraram meus gestos?

Se hoje certamente somos outros?

 

Cantiga de amor
(em Cadernos de geografia) 

A mão que feriu, agora traz a bandagem.
Silêncio: atrás da névoa, dormem ainda florestas.
Não temos mais vinte anos.
E não sei se jamais deixaremos o traçado asfalto
para nos aventurarmos em musgo.
E sorver o fino aroma dos talos.
Dormem ainda florestas
atrás da névoa; silêncio. Não te movas.
Olha para cima: a dançarina
passa leve alheia sobre o fio esticado.
Não grites.
Longe, muito longe
a menina de vestido de organdi
toca ainda piano para as visitas.
Como um pequeno pássaro acorrentado.
Não grites.
Contemplemos juntos as florestas adormecidas.
Sim, não temos mais vinte anos.
Aceita pois a bandagem
da mão que feriu.

 

Trânsito
(em Cantares) 

Vim para morrer. Trouxe comigo
os panos de linho claro. Na mão fechada, um lenço
e o gesto do recém-nascido.
Ao pescoço,
sete voltas de cordão. Medalha.

Quem disse que trouxe nos olhos abertos
lendas de antigas infâncias?
Quem disse que, das mãos, escapou-me a ânfora,
lançando ao chão, entre cacos, o vinho?
Vim para morrer tão simplesmente
como caem as folhas e se apagam as cigarras
ao final de um ciclo.
Decerto o que tinha que cumprir, cumpri.
Embora esperasse tão mais.
(Somos sempre uns príncipes em pensamento.)

Ainda as vísceras se esforçarão em seu inocente exercício.
Ainda o pulso latejará por obrigação de mais um dia.
O sol pousará no horizonte. Pela janela ainda verei a lua
nascer dourada no mar.
Então partirei, madrugada.

Deixo – infelizmente –
o quarto desarrumado,
a cama desfeita
os papéis em desordem.

 

Sempre
(em Cadernos de geografia) 

As badaladas do relógio na casa deserta.
A manhã despontando na sala onde foi o velório.
A primeira menstruação escorrendo entre as pernas.

Nunca mais é o que se recebe de olhos abertos
e que o pescoço mal sustenta sem se vergar.
No hospital o leito ficou mais branco, esticado, vazio.
Os vinte anos ficaram para trás
junto com tudo o que não foi
e que acalentamos como ainda-sonhos
lado a lado com o que somos de real.

E essa despedida diária
de nós mesmos.

 

Este é um poema longo, que incluí porque é diferente de todos os meus poemas na maneira de apresentar o assunto. Inclui inclusive um diálogo que não é um diálogo qualquer. No ritmo e sonoridade é parecido. (em Invenções do Silêncio)

É precedido por uma epígrafe:

 

“Encontrado em Saquarema o corpo do
jovem mergulhador Conrado Malta”
do noticiário da época

 

O mar se fez infinito,
se fez infinito o mar
para roubar o menino,
o que gostava do mar.
Renascia todo dia,
um dia não renasceu.
O mar se tornou mais fundo,
o mar chamou-o ao seu mundo,
sem querer, obedeceu.

Procura-se dia e noite,
procura-se sem parar,
anjos negros de borracha
descem ao fundo do mar.
Lançam-se redes dos barcos,
mas tudo volta mais frio
pingando o choro do mar.

O mar se fez mais bonito
para o menino roubar.
Abriu a verde pupila
para guardar o menino
em alçapões de luar.

“– Um homem é tão pequeno,
tão difícil de encontrar!
Ele era quase um menino,
gostava tanto do mar...”

O mar ordenou aos peixes
que não tocassem se corpo.
Abraçou-o exausto e exangue,
foi seu par mais delicado
naquela dança girada,
no seu bailado de morto.
Anfiteatros, salões,
o mar levava o menino
por lentas portas e arcadas.
Sussurrava ao seu ouvido:
– Foste, entre tantos, eleito.
Agora és senhor do verde,
vê nosso reino, que lindo,
vem escolher o teu leito.

Mas os homens de borracha
insistem em mergulhar.

O mar lhes pergunta um dia:
– Por que quereis o menino
que entre vós agora é sombra
sem face, sem canto, sem grito?
Os anjos dizem apenas:
– Nosso menino queremos
– Ele agora é só silêncio...
– Para os adeuses e os ritos.

– Já provastes meu poder
e quereis continuar?
Tenho contrato co´os ventos,
devo obediência aos astros,
sou senhor de um sono verde
que, horizontal como o tempo,
cobre florestas de mastros.
Meus rugidos, meus silêncios,
minhas planícies imensas,
abismos, profundidades,
meus risos, meus colossais
brinquedos de tempestades...
Tão ligeira a vossa morte!
Bastam uns poucos minutos
para um homem se afogar,
não temeis a vossa sorte?
Em vossa casa as mulheres
passam o dia a rezar.
Os anjos dizem: – Tememos,
mas poucas certezas temos
tão retas e definidas:
queremos nosso menino
para os adeuses e os ritos.
Grande é a vossa majestade,
sois senhor das nossas vidas,
mas não da nossa vontade.
Maré baixa, maré cheia,
sol e lua sobre a areia,
nas malhas da maresia,
por cima da ventania,
procuraremos no céu,
procuraremos no mar,
nossas mulheres e filhas
muito terão que rezar.

E os emissários insistem
tanto e sempre e sem parar,
que o mar por fim comovido,
num cansado gesto de onda,
verde suspiro de espuma,
abre as mãos, solta o menino,
devolve à terra o menino
que ele quis tanto guardar.

 

Nos primeiros meses que se sucederam à morte de meu pai, escrevi quatro poemas que vieram a formar uma elegia, publicada em Rede Fluvial. Vou ler aqui o primeiro deles. 

A elegia, como um todo, teve por epígrafe dois versos de Drummond, escritos para seu pai também postumamente.

 

Elegia
(em Rede Fluvial) 

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
Carlos Drummond de Andrade


I

Toda palavra ficou parada,
tremendo à beira do poço.
E ali mirava meu rosto perdido.
As raízes iam brotando
tramando um tempo novo e atônito.
O gesto ficou suspenso
na xícara de café que tremeu na mão;
e não me aproximei dos teus olhos fechados,
não toquei tuas mãos maciças
nem teu rosto modelado nessas grandes e lívidas horas de luas aflitas,
orvalho e espera. A noite sangrava.
A madrugada apontou inútil e lavada
sobre as lajes brancas e os botequins se abrindo.
Não depositei na tua testa aquele beijo de filha,
perdoa.
A morte te fazia grande como um templo
ou um navio.
E fazia de mim a menina
hesitante à porta de uma sala cheia de visitas,
no umbral de um quarto cheirando a lamparina e éter.
Passava por ti a um tempo opressa e enviesada,
proibida de cruzar fronteiras.
Desce do teu pedestal,
desfaz essa face construída tão depressa, numa única noite,
me fala de novo dos bichos e das estrelas.

E como tens falado comigo!
Que mal cessou o raspar da pá
e já dentro de mim ouvia o rolar surdo do terremoto.
Pressenti esses movimentos tectônicos, esses abalos sísmicos,
e com que facilidade me empurraste a crosta
e impuseste a forma de tuas cordilheiras, vales,
maciços vulcânicos, continentes, ilhas,
mundo-globo, mapa das terras e das águas.
Arrancado do fundo do lago, afloras assim imenso,
leviatã abissal e pré-histórico,
coberto de algas e de tantas coisas emprestadas.
E num largo espreguiçamento suspirado,
sacodes de ti todo o supérfluo
todo o momentâneo e contingente
e me preenches tanto com a tua presença!
Era preciso então ver-te assim preso e limitado
para que te desprendesses das exíguas medidas cotidianas,
dos pequenos constrangimentos de filha?
Era preciso que os Anjos dissessem “Nunca”
para responderes com força: “Sempre”?
E esse teu amor por mim, o meu por ti,
eu não sabia que, em tudo, éramos assim tão secretos,
diamante no fundo da mina
brilhando, brilhando,
agora e sempre aflorado,
última joia que me deste.

 

Os irmãos
(em O Paraíso era antes) 

Eis as crianças.
Como retratos colados em grandes álbuns abertos,
como insetos capturados no âmbar,
os irmãos ficaram
suspensos na teia do instante,
surpreendidos pelo clarão das luzes,
e pelo olho certeiro das lentes.
(A hera se alastra, cobrindo paredes.)

Os irmãos ficaram morando
num tempo remoto de profundos quintais,
sob a chuva continuada dos jasmineiros,
segurando a boneca, empunhando o tambor,
contemplando horizontes fechados
com grandes olhos pensativos,
sustentando sobre os ombros
o peso do futuro.
(A hera se alastra, cobrindo muros.)

Sim, houve essas crianças que ficaram
no fundo recuado dos quintais,
em pequenos jardins murados,
cercadas de uma vegetação esmaecida e sufocante,
o vento parado, os areais cinzentos,
tendo às costas
bosques inverossímeis,
pontes e troncos de pedra,
cachoeiras congeladas,
estalactites gigantescos.
E ainda hoje, os irmãos residem nesse espaço,
pousados sobre a palma horizontal do acaso,
em altas páginas, abertas aos pares
como portões ou suspiros.
Permanecem assim, unidos,
para além dos acontecimentos,
para além da Morte,
além de qualquer palavra.

 

Agora vamos ao segundo tema: 

Perfis, cotidiano

Em primeiro lugar eu vou ler um poema curto de que gosto porque acho que ele alcança o poético por uma certa iluminação que partilha com os haikais japoneses.  Um poema curto precisa logo dizer a que veio e eu acho que este dá conta do recado.

 

Instantâneo
(em O Paraíso era antes) 

No pátio do hotel,
as folhas vermelhas
caídas no chão.

A entrada, o tapete,
três folhas caídas
da minha mão.

Silêncio amarelo:
furtivo momento
em que fui outono.

 

Natureza viva
(em Invenções do silêncio) 

Qual o desenho mais fino
de um peixe?
Lenta construção de espinhas
sobre um eixo?
Traço veloz, disco amplo,
é gume ou face da lâmina,
lua nova ou lua cheia?

Qual o desenho mais simples,
e sendo simples, inteiro?
Somente a linha nervosa
do flanco?
O peso quieto dos olhos,
o fole da sua boca
bebendo o céu no oceano?
A cor que passa brilhando
pelo dentro das escamas,
o quase azul, quase aéreo
que há no tremer das membranas?
Ou sua expansão raiada,
estática, transparente,
que distendendo, concentra,
que divergindo, converge
ao mudo ponto-momento,
àquele lastro em seu centro
por onde ele é ancorado
aos muitos centros da água
sem nunca estar preso a nada?
A vegetação das brânquias,
fina plumagem interna
do pássaro vertical
capaz de um planar mais denso?

Como desenhar o peixe
naquilo que não se vê
– se pressente –
como um olhar pela nuca
que faz voltar a cabeça?

O desenho essencial
do peixe:
o traço agudo da fuga,
o claro-escuro silente,
o espaço vago ocupado
no momento precedente.

 

Amendoeira
(em Cantares) 

Olhei para o alto,
para a copa da amendoeira,
e era o salão de um castelo,
era um festim pagão.
Catedral de folhas, templo
onde se anunciam manhãs e tardes,
onde se celebram maios e setembros.
E janeiros inchados de insetos.
Abóbada verde, arcada,
onde se consuma o tempo.
Olhei para o alto,
para a copa da amendoeira
palpitante de pássaros e cigarras
e entre as folhas esmaltadas
escutei o passar do vento.
E nunca terei pecado
porque de novo nasci.

 

Paisagem
(em Invenções do silêncio) 

Em meus ouvidos o verde marulho, marulho
de frias águas batendo;
o doce barulho
do vento soante – cicio de seda
brunindo zinco,
e o chiar de espumas crepitantes
que rolam e chegam.
Em meus dedos a temperatura
da água, a fresca textura
do lânguido líquido,
o áspero cheiro de sal.
E peixes passando,
enxames de peixes voando
tocados de vento – fervilhantes folhas;
em meus olhos, verde, prata, azul.
E a branca areia e as conchas brancas
da lagoa.

 

Durante alguns anos trabalhei próximo à Galeria dos Empregados do Comércio, que exercia sobre mim esse fascínio que as galerias exercem, mesmo as sem maiores atrativos como é o caso, de nos fazerem penetrar de repente num outro mundo, diferente do da rua e das calçadas.

 

Galeria dos Empregados do Comércio
(em Rede fluvial) 

Toda essa gente na galeria
são operários, comerciantes,
serão poetas, são bailarins?
Toda essa gente no longo túnel
passando lenta sob luzes frias,
leito de passos determinados,
pés de borracha pelas calçadas...
(Pelas vitrinas, sapatos, lenços,
correntes de ouro, medalhas, guizos.)
Toda essa gente na galeria,
passando muda em câmara lenta,
são mortos-vivos, são encantados?
Tudo é cinzento por trás dos brilhos,
por trás das vozes, além dos risos...
E vejo as sombras além das sombras,
peixes, cardumes, dentro do verde
precipitado embaixo da ponte.

 

Poema entrelaçado
(em Cadernos de geografia) 

E dormiremos de mãos dadas
entre sedas, mármores e cristais,
no leito alto de madeira escura.

Os ônibus passam cheios.
Presta atenção na carteira
nos bancos de trás.

Dormiremos lado a lado,
minha mão sobre teu ventre
semeando esculturas.
Sob luzes surdinadas.

Cuidado com os pivetes.
Menino não sai de relógio
ou com muito dinheiro.

Dormiremos de mãos dadas,
e se os reposteiros se abrirem,
as luzes de néon varrerão nossos corpos
– vermelho azul branco vermelho –
e deles farão jorrar fontes.
(Além, um farol varre a noite
e a maresia pode impregnar certos sonhos...)
Dormiremos, dormiremos.

Um salário mínimo não dá para viver.
E esse pessoal vem do subúrbio,
esquenta marmita
e é sempre tanto filho pra criar...

Dormiremos, dormiremos
com as sombras das samambaias enleadas nos cabelos
e luas transitando opalas sobre as pálpebras fechadas,
a ramagem breve das avencas entre os dedos.
(E o bosque tramado de acúleos,
o riacho gorgolejando entre as pedras,
os pavões pelos jardins antigos.)
Entre reposteiros e cortinas, mansamente,
mal se ouve o riacho entre as pedras.

Balearam o homem em frente da nossa janela.
A faxineira estava limpando os vidros e assistiu.
Mas fui eu que vi a moça caindo
do quinto andar.
Parecia um boneco, nem pude acreditar
que era gente,
o porteiro foi conferir.
O pior foi o barulho fofo
que fez no chão.

Dormiremos em leito de plumas
após os vinhos claros em altos copos,
veludos corridos sobre todos os gestos.
E haverá fios de pérolas, sussurros e cílios baixos.
E quando se assopram as velas
a nudez é mais confiada
no leito alto de madeira escura.
Com todos os sonhos entranhados.

Gritaram “pega ladrão” e ele ainda tentou fugir.
Mas deram muita porrada e levaram no camburão.
E tinha só dezessete anos.


Nos anos oitenta, estive em Salvador a trabalho e depois estiquei o fim de semana para passear.  Visitei então a Escola de Medicina que estava no auge da decrepitude. Digo visitei, mas na verdade, admirei de fora dos muros – devia estar interditada. Mais tarde soube que o prédio foi restaurado e deve ter ficado muito bonito. Mas naquele tempo exerceu sobre mim um encanto especial.

 

Escola de Medicina
(em Cadernos de geografia) 

Entre as ladeiras de pedra,
olhai o solar antigo:
o tempo escorreu seus dedos
por sobre o musgo dos muros,
colocou o seu casulo
nas órbitas das estátuas
cegas às asas futuras.
Pelas paredes das casas
traçou seu mapa de rugas,
olhai o solar e vede:
horas derrubando vigas,
horas trincando paredes,
pondo franjados de avencas
pelo bronze das estátuas,
entre tijolos e telhas;
trazendo a morte na vida
que explode por entre as pedras
nos leques das samambaias,
nas raízes de figueiras.
E chuvas pelas vidraças
baças de vento e poeira.
Rastejando nas ladeiras,
olhai a sombra dos homens,
olhai para nós e vede:
ficamos como as estátuas
cheios de limo por fora,
líquenes  pelos cabelos,
e trazemos sobre os olhos
esse franjado de avencas,
essas flores entre os dedos.
Ficamos assim calados,
a chuva apagando os traços,
as pupilas desbotadas
gastas de dor e de tempo;
cheios de musgo por fora,
de morte e espanto por dentro.

                                               

Noturnos – Poesia
 

Noturno I
(em Rede fluvial) 

Por entre agulhas de sono,
caminhei meu caminhar.
Não tinha casa nem dono
e não sabia cantar.

Por entre agulhas de sono,
alonguei o meu olhar.
Ai, paisagem de abandono!
Sequer sabia chorar.

Por entre agulhas de sono,
flores brancas de luar.
E no chão, lanças de sombra
longas como o meu olhar.

Resvalavam entre os dedos
invisíveis coisas mortas
– ocasos na madrugada –
quando as agulhas se abriram
em mil rosas encarnadas.

Calada brecha no tempo,
ofereceram-se abertas,
mas o vento do meu sono
tocou as flores do instante
e recompôs o deserto.

Agora respiro o sonho
daquela noite apagada.
Por entre agulhas de sono
transito hoje (acordada?).

E vou perguntando a espectros,
por órbitas descabidas,
se das agulhas de pedra
brotam as rosas da vida.

 

Noturno II
(em Rede fluvial) 

Entrava com passo leve
numa cidade de prata.
Quem foi que escutou meus passos?
Eu ia de olhos fechados
com sombras pelos dois lados.

O morcego abria o leque
silente de suas asas
– folha de chá n’água quente.
Lua fina, transparente
pelo rendado dos galhos.

Conversávamos co’ as árvores
de braços longos
e longas barbas.
Entre os vultos dos morcegos,
as sombras de gaze negra
e o passo leve dos gatos.

Quem gritou de olhos fechados
por entre muros caiados
e lençóis de linho branco?
Enquanto eu me balançava
na fronteira de dois mundos
com águas pelos dois lados.

Eu ia sendo arrastada
no leito escuro do sono,
na floresta do abandono
entre as margens acordadas,
as mãos já tocando o fundo,
os ouvidos inda à tona
ouvindo vozes e carros.

Sobre o muro branco,
cacho de glicínia
derramado.
Asa de morcego
(ou foi borboleta?)
pulo de gato.
Bordado na fronha,
retalhos de sonho
já deslembrado.

Onde andaram meus sapatos
enquanto eu me equilibrava
por entre jorros de sombra,
pelas ruínas do espanto,
com muros de linho branco
oscilando dos dois lados

nessa cidade de prata?

 

Noturno III
(em Cadernos de geografia) 

Na esquina da Noite com o Dia,
andava – perdi meu passo,
cantava – perdi o compasso,
e hoje em pedra transmutada,
em rua de espera e sombra,
aguardo o fluir do sonho.

Não posso cantar agora
o que cantar eu queria.
Nem mesmo chorar eu posso,
de encontro a negras muralhas
cresce o meu pranto sombrio,
pois o instante está suspenso
como brancas mãos de estátua
ou como barca parada
na crista da vaga imensa.

Preciso esperar um dia
que gere ritmo de canto,
ou esperar pela noite
que possa acolher meu pranto,
transformar em morna lágrima
esse mar de indiferença.

Na esquina da Noite com o Dia
– na esquina da face perdida,
parei.

Deixei um anjo suspenso.


...

Não é a areia incapturável na ampulheta,
esses instantes escorridos entre os dedos
que me assustam.
Não são coisas perdidas, flores murchas,
nem a decidida modelada solidão.
O que temo é esse país desconhecido,
essa hora morta de parada flor de cinza.
Esse deserto é que me assusta, esse cascalho
que se estende entre a viagem e o viajante,
muro erguido entre os jardins e o humano chão,
por onde nem sempre o sonho acha passagem
– esse silêncio entre o silêncio e a canção.

(em Rede fluvial)

 

Caminhada na Praia
(em Invenções do silêncio) 

A água me tece lentas perguntas em conversa líquida.
As conchas pisadas crepitam perguntas nas bruscas arestas.
E olhadas de perto, são mudas palavras em forma concreta.
A prata azul-roxa no flanco dos peixes morridos de pouco,
o caco de lua guardado nos olhos de espanto redondo,
são árduas perguntas.
O vulto de um homem que os longes diluem na sobra e no vento,
a carne opaca no resto alvacento do peixe sem olho
indagam surdinas.
A casa fechada, paredes compactas de cal e saudade,
o som de meus passos, maciços na areia, em confins de praia,
o canto dos grilos, o salto de um gato de olhares esquivos
perguntam, perguntam, perguntam.
Os barcos vazios berçando silêncios, berçando fantasmas,
balançam convites, oscilam chamados em águas longínquas.
E um brilho se mexe na fria e parada lagoa de sal,
que escura marulha, marulha e marulha nos longes de mim.


...

 

Eis a chave
dos nossos reinos perdidos.
Quem escuta atrás da porta,
quem sussurra, quem suspira?
Eis a chave.

Eis a chave
dos nossos desertos,
de corredores vazios,
de portões rangendo abertos.

Eis a chave, o passe, a senha
para reinos muito antigos,
para planetas alheios
girando pelo universo
sem humano compromisso.

A chave que leva ao rosto
dessas mulheres de outrora,
que nos olham das paredes
dentro e negras molduras,
os vestidos afogados
da viuvez prematura,
os amantes escondidos
em veludos de recato,
sob chapéus, véus e fumos.
Eis a chave.
Cofres de anéis e de cartas,
os grandes olhos abertos,
febres, angústias, vigílias,
os desgovernos humanos
pelos caminhos desertos.

Eis a chave,
a senha, o rosto,
eis o amigo e o inimigo.
Segredos de fechaduras
perdidas.

(em Cadernos de geografia)

 

Presença
(em Rede fluvial) 

Já a poesia não se dá, como flor.
Escrever se faz difícil
passagem em caverna estreita.
Lentas ausências se somaram,
fizeram o ar rarefeito,

E a aranha é uma estrela de pasmo
na tela vazia dessas ausências.

Já não há mais simpatia
nem de mim para mim mesma.
E o ritmo dos meus ouvidos
é já de um tempo escoado,
é já de um sangue esvaído,
sujo e seco – coagulado.

A aranha é pedrada no vidro,
a aranha é um espasmo, é um grito,
a aranha é rastilho de náusea
no teto da casa invadida,
correndo pela existência.

A aranha é sol negro de tédio
no espelho quebrado da consciência,
é a estrela mofada do medo
no muro caiado do meu silêncio.

 

Dia qualquer
(em Invenções do silêncio) 

Não é preciso um grande amor
para se compor um poema.
Os pratos no escorredor,
a gota d’água,
os talheres sobre a pia.
A luz recuada no fundo da sala
por trás das cortinas.
O silêncio agarrado ao tique-taque do relógio
no fundo da tarde.
A vida girando imensa.
A alegria no açucareiro.

Mais tarde a lua subiu vermelha e sobrenatural.

 

Favo

Tenho perseguido esse veio de mel.
E, obstinado, ele se recusa
e se fecha em sua célula.
Tenho perseguido esse veio de mel.
Agora, ferido o favo,
esvai-se a fonte dourada.

E as palavras acorrem aos enxames.      

 

E para terminar dois poemas  inéditos, que se passam ali, entre palavra e silêncio, entre consciência e inconsciente, entre vida e morte.  


...

 

Entre a pergunta calada
e a resposta pressentida
nesse leito de penumbra
cheio de sombras pousadas
passa, lenta, a minha vida.

Faixa de areia indecisa
por entre a enchente e a vazante
entre a palavra e o silêncio
é lá que eu vago perdida,
presente e ausente do instante.

Mas o silêncio é mar grande
e as palavras proferidas
são rios intermitentes
que, entre dois grandes silêncios,
surge’ e secam – como a vida.


...

 

Do que extraio do silêncio,
vou construindo meu rosto.
Mas o silêncio é tão grande
e o que digo é sempre pouco!

Quem escolheu por ofício
o de contar grãos de areia,
bem sae a origem das dunas:
deu ao vento a vida inteira.

Quem escolheu por ofício
o de capturar palavras,
deu em vão suas vigílias,
deu em vão noites inteiras

por umas linhas escritas
que amanhecem apagadas.


POSTADO EM 08 DE ABRIL
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